Eles estão por todo o lado. Há "estudos recentes" que nos dizem que
tomar café faz bem e outros que garantem que faz mal; que comer
chocolate afinal não engorda; que sorrir muito prolonga a esperança
média de vida; que os noctívagos são mais inteligentes do que os
outros; que as pessoas com mau feitio vivem mais tempo.
Todos os dias lemos notícias como estas: a ciência está,
aparentemente, em todo o lado. A internet e as redes sociais dão
uma ajuda.
"Há muitos estudos que se tornam populares porque as suas
conclusões vão ao encontro daquilo que já pensamos. E sentimo-nos
muito inteligentes", diz David Marçal, autor do ensaio "Pseudociência"
(Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2014).
Para o cientista, estes estudos enquadram-se na "ditadura do
engraçadismo", em que se procura "simplesmente fazer notícias
engraçadas vagamente relacionadas com ciência".
O problema, para Marçal, é que muitas vezes essas notícias
limitam-se a fazer eco de um estudo, apresentando uma única fonte,
sem qualquer tipo de espírito crítico, contraditório ou contextualização.
"Imaginemos que falávamos sobre a economia em Portugal e
dávamos como adquirido aquilo que diz a
ministra das Finanças – não púnhamos isso num contexto, mas
dizíamos que era assim. Não faria sentido, assim como não faz
sentido ter uma notícia de ciência apenas com uma única fonte,
um único artigo científico."
"Olhar para um único artigo científico é mais ou menos como escolher
o destino de férias ao olhar para um único postal ilustrado",
aponta Marçal. "Se eu decidir ir para Albufeira de férias porque vi um
postal da praia de Albufeira deserta ao pôr-do-sol, possivelmente, se
for para lá em Agosto, apanho uma desilusão. Tenho de reunir mais
dados, ver a paisagem toda, não posso apenas centrar-me no
postal ilustrado."
Carlos Fiolhais, físico e professor universitário, também é crítico.
"Na internet encontra-se uma coisa e encontra-se o seu
contrário", avisa. "O resultado de um artigo científico não é
absolutamente seguro, tem de haver outros que confirmem aquilo
que foi dito. E muitas vezes aquilo que vale para uma certa
população já não vale em certos domínios, por exemplo, na
alimentação ou na saúde".
Um estudo que recentemente foi notícia garantia que os
"pais que lavam a loiça criam filhas profissionalmente mais
ambiciosas". Carlos Fiolhais vê nisto um "disparate":
"A igualdade de género é uma coisa que se pratica em casa,
se não se praticar em casa não se transmite aos filhos.
Mas isso é algo que é trivial, não é preciso um estudo científico.
A partir de um inquérito dizer que os pais que lavam a loiça
criam filhas mais ambiciosas já entra no domínio do disparate."
"Eurekas" e mais "eurekas"
Um campo onde abundam notícias sobre suposta ciência é o
da alimentação.
"A nutrição é um campo delirante", confirma David Marçal.
"Há uma série de pessoas que estão fortemente empenhadas
em dividir todas as substâncias do mundo em dois grupos:
ou que causam cancro ou que curam o cancro. E, às vezes,
as substâncias saltam de um para o outro semanalmente."
E essas informações podem não ser inócuas. "Os riscos dos
produtos naturais são reais. Têm efeitos", adverte o cientista.
"Basta pensar que a cocaína é um produto natural, que a cicuta
é um produto natural, não é por isso que são inofensivas.
Se entrarmos na Amazónia e nos pusermos a ingerir plantas
ao 'calhas' podemos correr riscos sérios. Mais: existem riscos
de interacção de produtos naturais com outros medicamentos."
Não faltam notícias de estudos que apontam para conclusões
bombásticas ("trabalhar demais engorda", "fazer jogging em
demasia faz mal", "emoções positivas" – ou o já citado
mau feitio – "prolongam a esperança média de vida"…).
Nestas notícias, diz Marçal, a "ciência é tratada como um
conjunto de curiosidades avulsas em que tudo é possível.
É uma representação retorcida da ciência; é a ciência como
uma caixa negra de onde saem conclusões mirabolantes."
"Retratam a ciência como um conjunto de 'eurekas' mais ou
menos aleatórios que vão surgindo inesperadamente aqui e ali.
Essa imagem da ciência é um campo fértil para semear ideias
pseudocientíficas", aponta David Marçal, que sublinha também
o fenómeno das notícias sobre "ciência" em que as fontes são
os próprios jornais e que se propagam a citarem-se uns aos outros.
Um exemplo é do famoso dia mais deprimente do ano, uma notícia
que aparece todos os anos na comunicação social.
"Segundo a versão original, terá sido a conclusão a que chegou um
psicólogo escocês através de uma fórmula e claro que essa fórmula
é inventada – ele até já disse que a inventou por encomenda de
uma empresa de agências de viagens para estimular as viagens no
Inverno, quando as pessoas estão deprimidas", diz o ensaísta.
"Essa notícia já existe há dez anos e a fonte é sempre:
uma notícia do 'Guardian'…"
Um bocadinho de cepticismo, s.f.f.
"Este bombardeamento numa sociedade mediatizada é inevitável.
O que não é inevitável é nós acreditarmos em tudo", considera
Carlos Fiolhais, um dos mais conhecidos divulgadores de ciência
em Portugal.
"Gostaria muito que em Portugal as pessoas fossem menos
crédulas. Por exemplo: 'Cientista da NASA diz que as pulseiras
Power Balance mantêm o equilíbrio'. Isso é pura pseudociência.
Faz-se passar ciência, mas não é – tem todo o aparato, porque
aparece um cientista, uma bata branca, fala-se de teoria quântica
e coisas modernas. E muitas pessoas compram essas pulseiras e
coisas do mesmo género. É a chamada banha da cobra", afirma.
"O único antídoto para a pseudociência e para as pessoas não se
deixarem enganar por logros é de facto a cultura científica",
diz Marçal.
"Temos de usar o nosso espírito crítico", conclui Fiolhais. "A única
maneira de nós nos protegermos é ter cuidado, verificar a fonte,
quem diz o quê e porque é que diz o que diz."
tomar café faz bem e outros que garantem que faz mal; que comer
chocolate afinal não engorda; que sorrir muito prolonga a esperança
média de vida; que os noctívagos são mais inteligentes do que os
outros; que as pessoas com mau feitio vivem mais tempo.
Todos os dias lemos notícias como estas: a ciência está,
aparentemente, em todo o lado. A internet e as redes sociais dão
uma ajuda.
"Há muitos estudos que se tornam populares porque as suas
conclusões vão ao encontro daquilo que já pensamos. E sentimo-nos
muito inteligentes", diz David Marçal, autor do ensaio "Pseudociência"
(Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2014).
Para o cientista, estes estudos enquadram-se na "ditadura do
engraçadismo", em que se procura "simplesmente fazer notícias
engraçadas vagamente relacionadas com ciência".
O problema, para Marçal, é que muitas vezes essas notícias
limitam-se a fazer eco de um estudo, apresentando uma única fonte,
sem qualquer tipo de espírito crítico, contraditório ou contextualização.
"Imaginemos que falávamos sobre a economia em Portugal e
dávamos como adquirido aquilo que diz a
ministra das Finanças – não púnhamos isso num contexto, mas
dizíamos que era assim. Não faria sentido, assim como não faz
sentido ter uma notícia de ciência apenas com uma única fonte,
um único artigo científico."
"Olhar para um único artigo científico é mais ou menos como escolher
o destino de férias ao olhar para um único postal ilustrado",
aponta Marçal. "Se eu decidir ir para Albufeira de férias porque vi um
postal da praia de Albufeira deserta ao pôr-do-sol, possivelmente, se
for para lá em Agosto, apanho uma desilusão. Tenho de reunir mais
dados, ver a paisagem toda, não posso apenas centrar-me no
postal ilustrado."
Carlos Fiolhais, físico e professor universitário, também é crítico.
"Na internet encontra-se uma coisa e encontra-se o seu
contrário", avisa. "O resultado de um artigo científico não é
absolutamente seguro, tem de haver outros que confirmem aquilo
que foi dito. E muitas vezes aquilo que vale para uma certa
população já não vale em certos domínios, por exemplo, na
alimentação ou na saúde".
Um estudo que recentemente foi notícia garantia que os
"pais que lavam a loiça criam filhas profissionalmente mais
ambiciosas". Carlos Fiolhais vê nisto um "disparate":
"A igualdade de género é uma coisa que se pratica em casa,
se não se praticar em casa não se transmite aos filhos.
Mas isso é algo que é trivial, não é preciso um estudo científico.
A partir de um inquérito dizer que os pais que lavam a loiça
criam filhas mais ambiciosas já entra no domínio do disparate."
"Eurekas" e mais "eurekas"
Um campo onde abundam notícias sobre suposta ciência é o
da alimentação.
"A nutrição é um campo delirante", confirma David Marçal.
"Há uma série de pessoas que estão fortemente empenhadas
em dividir todas as substâncias do mundo em dois grupos:
ou que causam cancro ou que curam o cancro. E, às vezes,
as substâncias saltam de um para o outro semanalmente."
E essas informações podem não ser inócuas. "Os riscos dos
produtos naturais são reais. Têm efeitos", adverte o cientista.
"Basta pensar que a cocaína é um produto natural, que a cicuta
é um produto natural, não é por isso que são inofensivas.
Se entrarmos na Amazónia e nos pusermos a ingerir plantas
ao 'calhas' podemos correr riscos sérios. Mais: existem riscos
de interacção de produtos naturais com outros medicamentos."
Não faltam notícias de estudos que apontam para conclusões
bombásticas ("trabalhar demais engorda", "fazer jogging em
demasia faz mal", "emoções positivas" – ou o já citado
mau feitio – "prolongam a esperança média de vida"…).
Nestas notícias, diz Marçal, a "ciência é tratada como um
conjunto de curiosidades avulsas em que tudo é possível.
É uma representação retorcida da ciência; é a ciência como
uma caixa negra de onde saem conclusões mirabolantes."
"Retratam a ciência como um conjunto de 'eurekas' mais ou
menos aleatórios que vão surgindo inesperadamente aqui e ali.
Essa imagem da ciência é um campo fértil para semear ideias
pseudocientíficas", aponta David Marçal, que sublinha também
o fenómeno das notícias sobre "ciência" em que as fontes são
os próprios jornais e que se propagam a citarem-se uns aos outros.
Um exemplo é do famoso dia mais deprimente do ano, uma notícia
que aparece todos os anos na comunicação social.
"Segundo a versão original, terá sido a conclusão a que chegou um
psicólogo escocês através de uma fórmula e claro que essa fórmula
é inventada – ele até já disse que a inventou por encomenda de
uma empresa de agências de viagens para estimular as viagens no
Inverno, quando as pessoas estão deprimidas", diz o ensaísta.
"Essa notícia já existe há dez anos e a fonte é sempre:
uma notícia do 'Guardian'…"
Um bocadinho de cepticismo, s.f.f.
"Este bombardeamento numa sociedade mediatizada é inevitável.
O que não é inevitável é nós acreditarmos em tudo", considera
Carlos Fiolhais, um dos mais conhecidos divulgadores de ciência
em Portugal.
"Gostaria muito que em Portugal as pessoas fossem menos
crédulas. Por exemplo: 'Cientista da NASA diz que as pulseiras
Power Balance mantêm o equilíbrio'. Isso é pura pseudociência.
Faz-se passar ciência, mas não é – tem todo o aparato, porque
aparece um cientista, uma bata branca, fala-se de teoria quântica
e coisas modernas. E muitas pessoas compram essas pulseiras e
coisas do mesmo género. É a chamada banha da cobra", afirma.
"O único antídoto para a pseudociência e para as pessoas não se
deixarem enganar por logros é de facto a cultura científica",
diz Marçal.
"Temos de usar o nosso espírito crítico", conclui Fiolhais. "A única
maneira de nós nos protegermos é ter cuidado, verificar a fonte,
quem diz o quê e porque é que diz o que diz."
In http://rr.sapo.pt/informacao_detalhe.aspx?fid=1&did=184353
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